Banco novo na praça

No dia 12 de março de 2009 inauguramos o Banco da Poesia, que pretende ser mais um ponto de apoio para essa modalidade literária nem sempre valorizada  em nossa cultura. A essência da poesia está em todas as artes, fundamentais  para a própria vida. Só quem sonha pode criar. Só quem cria faz o mundo evoluir. E quem provoca a evolução da sociedade, gera maior comunicação e reunião solidária entre as pessoas. Fernando Pessoa já vaticinava, há mais de 50 anos: O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho. Para ler mais, clique aqui.

Mais um tijolinho haicaiano

Ora, pois!




EntradaIsaías

Dizem os deuses oniscientes
        (e os há muitos por aí, a predicar seus conhecimentos
        sobre a eternidade e o efêmero)
que orar faz bem, acalma o espírito angustiado
e traz paz à alma.

Mas o que entendem eles de espíritos e de almas
se não conheceram os corpos de suas criaturas,
celas osseocarnais em que somos obrigados a viver?
Ou então, se às suas imagens e semelhanças fomos talhados
terão eles elementos sensoriais que simulam
a dor que deveras sentimos?
E por que inventaram a dor, os artesãos astrais?
Não poderiam ter-nos feito com matéria quintessenciada
e tênue, sutil e indolor?
 
Pedem os deuses oniscientes
que os adoremos e ocupemos seus templos e nosso tempo com orações.
Mas, na sua omnisciência, não sabem o que desejamos
e reiteramos nas preces e nas súplicas?
 
Afirmam os deuses oniscientes,
por meio de seus tradutores e supostos representantes,
que temos livre arbítrio, mas nos ameaçam com punições
se seguimos rotas inexistentes nos manuais celestes. 
 
Afirmam os deuses oniscientes que vaidade é egolatria
e egolatria é soberba, e soberba é pecado capital.
Mas porque aceitam as idolatrias a si dirigidas,
algumas desperdiçadas em custosos altares?
 
Recomendam os deuses oniscientes
permanentes prédicas para lembrá-los,
deuses e santos onissapientes e talvez desmemoriados,
que existimos aqui embaixo,
em estado de permanente de aflição.
 
Mas o que é oração, senão um evento unidirecional,
com respostas desprezadas, equivocadas e incompletas?
Deploro a vossa insegurança, senhores dos recônditos abissais,
ao sustentar vosso poder na ameaça às vossas frágeis criaturas
com castigos junto a Hades ou Belzebu
per saecula saeculorum.
 
Ora, pois, senhores deuses que tudo sabem,
cansei do meu silêncio
e me apresento em completo estado de nudez de alma,
sem artifícios literários ou de pretensa santidade,
pois santo não quero ser.
Sou o homem simples da terra esfarelada
do barro da primeira cerâmica factum in caelo
que recolheu, em uma quase completa existência,
todos os impostos a mim impostos sem maiores explicações,
a não ser o fato de que fui depositado no círculo vital
sob as condições de respirar manentemente,
alimentar-me de quando em quando,
trabalhar para patrões políticos,
multiplicar-me algumas vezes
e, diante de dúvidas filosóficas,
 
Ora, pois, aqui estou.
Nem recuo, nem avanço:
balanço na ponte entre o nada e o não sei onde.
Pergunto a vós: irei aonde?
 
        Mas de resposta somente o silêncio atroz.
 
Tudo atribuo a este meu ranço
de coisa antiga, sempre queixosa e inútil,
de coisa fútil e malcheirosa.
Quero ser ímpar, mas sou par de todos os homens
e das mulheres sem soluções,
sem o consolo baldado de orações.
 
O andar trôpego dos beberrões
marca meus passos. Não sinto abraços
ou o puro carinho das crianças
nessas andanças sem roteiro e horizonte.
Sou poeira universal, menos que um grão cortado ao meio
crendo-me montanha imortal.
Melhor cumpriria tal fado secreto
se filho fosse de Lethe,
sem a sede pelas águas do Mnemósine.
 
Ora, pois, ó deuses que tudo sabem,
não me impeçam mais o prazer do agora
sem a fantasia daquele que ora
pelo deleite nubívago do depois.
 
Curitiba, 06/02/2020
 

Além do incêndio de Notre Dame

Recebi um significativo texto sobre o lamentável incêndio da catedral de Notre Dame de Paris, escrito por uma ex-professora da Universidade dos Andes, de Bogotá, Colômbia, que merece ser lido por todos. Sabemos que a ereção daquela igreja, assim como de todas as que foram erguidas no período gótico da história da arte, foi motivada por grandes transformações sociais, religiosas, políticas e econômicas da Europa, onde, até então, dominava a política medieval, com estreita aliança entre reis e a igreja de Roma. As Cruzadas perdiam os seus objetivos religiosos e se transformaram no aprofundamento do fosso existente, até hoje, entre a igreja ocidental e a igreja oriental. Jerusalém – foco dos cruzados que se sucederam durante mais de mil anos, e de seus orientadores, para uma presumível consolidação da religião cristã romana e considerada durante todo o tempo como Terra Santa por várias crenças – tornou-se a eterna Terra de Conflitos, talvez o local onde mais se derramou sangue, sempre em nome de Deus.

Abade Suger

A história dá crédito ao abade francês Suger (1081-1151) como pioneiro do estilo gótico. Pároco da igreja de Saint Denis, ele lutava com um grande problema. O religioso registrou que, nos dias festivos, sua igreja ficava repleta de fiéis. Escreveu que “a multidão… empenhada em se reunir para adorar e beijar as santas relíquias, ninguém em meio à intensa densidade de milhares de pessoas podia mover um pé”. Claro que a solução era óbvia: aumentar o espaço. Naquela época, em que a arquitetura religiosa era inspirada nos ideais artísticos românicos, as construções eram pesadas, com paredes amplas e janelas diminutas, talvez por intenções defensivas, o que deixava o ambiente eclesial escuro e soturno. Consta que, durante a reforma de sua igreja, Suger teve uma inspiração, como se divina fosse. Imaginou um ambiente literalmente iluminado (símbolo da presença de Deus), cercado de paredes finas e sem divisões. Tudo isso unido à inspiração dos artistas e da também intensa reforma feita na arte contemporânea, foi também adotado um desenho que simbolizava a elevação espiritual: linhas ascendentes.

Paredes mais leves permitiram um verdadeiro desafio às leis da gravidade, pois era possível elevá-las quase sem limites, culminando nas agulhas que   coroavam as torres. A partir de Notre Dame, uma das primeiras igrejas monumentais erguida nesse estilo, houve uma evolução para um feitio mais rebuscado, conhecido como gótico flamejante (flamboyant), que em Portugal teve uma variação muito própria, batizada como Estilo Manuelino. Também em Portugal floresceu o Gótico Mendicante, exemplificado nas igrejas de Batalha e de São Francisco do Porto.


Interior da abadia de Saint-Denis

Foi erguida, então, a Abadia de Saint Denis, entre 1135 e 1144, (a partir de 1966 denominada Catedral Basílica) e fundado o Estilo Gótico. A arquitetura deu um salto técnico, com a utilização da ogiva na criação de abóbodas mais leves, com peso distribuído uniformemente. As paredes deixam de ser um elemento destinado exclusivamente ao suporte de cargas. Isso permitiu a abertura de janelas mais amplas, com belos vitrais colorido que filtram a luz para o interior.

Autorretrato de Giorgio Vasari

Mas coube ao pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari, (1511-1574), também consagrado como fundador da História da Arte, cunhar o termo Estilo Gótico, até então, a partir de Surge, conhecido como Estilo Francês (Opus Francigenum). Vasari criticava a arte medieval, em especial no campo da arquitetura, que, segundo ele, era obscura e negativa, o oposto da perfeição. Relacionou-a com a ação beligerante dos godos, que, no Séc. IV, invadiram a Europa e tiveram vários enfrentamentos com os romanos, chegando a saquear Roma, no Séc. V.

Essas contradições já abriam o caminho para o Renascimento da arte clássica e para o surgimento de pensamento mais aberto ao mundo e distanciamento de filosofias puramente religiosas. Redescobriam-se os filósofos gregos. Traçava-se a senda para o iluminismo e o mundo moderno.

Mas o que tudo isso tem a ver com um blog de Poesia? Tudo a ver, pois tudo, de certa maneira, quando encarado positivamente, é poesia. Lembremo-nos que o estilo Gótico acrescentou poesia e reflexões filosóficas nas construções religiosas, que seguiam as vertentes da arquitetura dos castelos fortificados, quando o que interessava era a segurança de seus ocupantes. Poesia no pensamento dos cientistas da época, os alquimistas, que sonhavam transformar a matéria bruta em riqueza, por meio de seus crisóis. Poesia na utilização da matemática para tornar mais bela a arquitetura. Poesia nas palavras de poetas, como o português Mário de Sá Carneiro (Lisboa, 1890 – Paris, 1916), contemporâneo e amigo de Fernando Pessoa, que deixou seu elogio a Nossa Senhora de Paris. Notem que, entre os versos, há quase previsões místicas (“Mas o Ouro não perdura / E a noite cresce agora a desabar catedrais… / Fico sepulto sob círios – / Escureço-me em delírios, / Mas ressurjo de Ideais…”)

Mário de Sá Carneiro: profético?

Teria Sá Carneiro, morto em Paris por vontade própria, pouco antes de completar 26 anos de idade, imaginado o que sucederia naquela cidade, um século depois?

Nossa Senhora de Paris

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir… Onde acoitar-me?
Os braços duma cruz.
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar…
Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar…
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos…
Mas o Oiro não perdura
E a noite cresce agora a desabar catedrais…
Fico sepulto sob círios —
Escureço-me em delírios,
Mas ressurjo de Ideais…
– Os meus sentidos a escoarem-se…
Altares e velas…
Orgulho… Estrelas…
Vitrais! Vitrais!
Flores de lis…
Manchas de cor a ogivarem-se…
As grandes naves a sagrarem-se…
– Nossa Senhora de Paris!…

            (do livro Indícios de Oiro, publicado em 1937 pelas Edições Presença)

Mas vamos ao texto a que me refiro no início deste post.

O que hoje se queimou e, em parte, desmoronou em Paris, não é simplesmente um “templo católico”. É um dos testemunhos vivos de que houve um tempo – a  baixa Idade Média – no qual o conhecimento, a arte, o trabalho (individual e coletivo) e a educação foram concebidos de uma forma mais abrangente e, talvez, menos ingênua que hoje. As catedrais góticas respondiam ao desejo universal de fazer um livro vivo para mostrar que o universo é habitável e cognoscível (ainda hoje essa é a base de todo esforço científico e de toda vaidade política, em última instância). As catedrais góticas eram – são – edifícios legíveis que ligam a vida curta e frágil do homem com o extenso, porém finito tempo do mundo (com a história e as gerações) e com a eternidade de Deus. Na construção de uma catedral gótica, todas as disciplinas de conhecimento e do quefazer estavam envolvidas. A construção não culminava em uma geração, nem em duas: quem terminava de erguer a catedral (se é que uma catedral se termina de fazer) eram homens os quais os iniciadores não tinham conhecido ou concebido. Com isso, a catedral era construída pela cidade inteira: por seu passado, seu presente e seu futuro. Os vitrais, as esculturas, a pintura, a arquitetura procuravam transmitir a história da humanidade, e, ao mesmo tempo, formular as perguntas corretas para chegar a entender como estava estruturada a realidade. Um público que, na época, era iletrado, em sua maioria, poderia adquirir conhecimento (alguns explícitos, outros mais sutis, herméticos, espirituais) observando a catedral, vivendo-a e compartilhando-a. A catedral tinha uma aspiração universal, que talvez não tenha tido nenhum outro empreendimento educacional até hoje (talvez a internet seja seu correlato mais exato). Hoje o incêndio de Notre Dame, um lugar onde passei horas desejando entender e, por vezes, recebendo a promessa de que um dia entenderei algo, recordou-me que tudo é efêmero. Mais do que os esforços do homem e de todos os seus amores pode o fogo do sol. Dias após de vermos a foto do buraco negro, eu também leio este incêndio como um convite para voltar os olhos para o saber das catedrais (às vezes as coisas são destruídas para se tornarem mais visíveis): para lembrar que os arquitetos e maçons góticos (e os autores de enormes livros de contos inseridos, que eram catedrais escritas) também se aproximaram (não menos do que nossa ciência empírica, que, entre outras coisas, é um desenvolvimento da alquimia e dos cálculos de medievais) para ver além; imaginar mais e mais longe. As torres e a espiral de Notre Dame, e todos os seus altos relevos, suas esculturas e vitrais, clamam apenas uma coisa: o ser humano pode conhecer e elevar-se. Hoje a fumaça, que sobe mais que a espiral, afirma o mesmo. Tudo no mundo é finito e tudo ascende.
Carolina Sanin / 15 de abril de 2019

Carolina Sanín Paz (Bogotá, 28 de abril de 1973) é escritora e docente colombiana, licenciada em Filosofia e Letras da Universidade dos Andes e PhD em literatura espanhola e portuguesa pela Universidade de Yale. É sobrinha da política colombiana Noemí Sanín e neta do escritor Jaime Sanín Echeverri. Foi professora do Purchase College da Universidade de Nova Iorque e da Universidade dos Andes, instituição que deixou em dezembro de 2016. Tem sido colunista o jornal El Espectador, da revista Semana, do portal La silla vacía e da revista Arcadia. Recentemente, sua novela Los niños foi traduzida para o inglês e publicada pela editora inglesa MacLehose Press.

Dia Mundial da Poesia

Há cinco anos, fiz uma homenagem a José de Anchieta, o poeta que inaugurou a arte em terras brasileiras, anos após o descobrimento, com a publicação de seu longo poema dedicado à Virgem Maria, em Latim e Português. O passar do tempo permitiu-me outro encontro com educador jesuíta, por meio de meu trabalho no Conselho Estadual de Educação do Paraná, que abriga uma Sala José de Anchieta, onde se reúne o Conselho Pleno. Neste princípio de ano, já a despedir-me de minhas funções administrativas (continuo como Conselheiro Suplente), a mudança daquela sala para o primeiro andar do prédio ora ocupado pelo CEE/PR me fez tomar uma decisão, contada abaixo, em um texto remodelado e que serviu de base para uma palestra aos Conselheiros, no dia 19 de março de 2019, aniversário de José de Anchieta. Com a republicação, faço também minha homenagem ao Dia Mundial da Poesia, uma vez que o agora São José de Anchieta inaugurou a arte poética no Brasil. – C. de A.

José de Anchieta, por Cleto de Assis/2019

Alguns historiadores defendem que o missionário jesuíta que aqui viveu de 1553 a 1597 foi primeiro poeta brasileiro. Conta-se que ele escreveu um longo poema dedicado à mãe de Jesus nas areias da praia de Iperoig, nome antigo de Ubatuba, no litoral paulista. Diz a tradição, quase ou puramente lendária, que Anchieta teria escrito esse poema com o auxílio de um cajado ou caniço. Pelo menos é assim que o representam em pinturas, como a imaginada por Cândido Portinari, em pelo menos duas versões.

Quando ocorreu a transferência da sala do Conselho Pleno do Conselho Estadual de Educação do Paraná (CEE/PR) do segundo para o andar térreo, alguém colocou na parede frontal o retrato de Tiradentes, que faz parte de nosso acervo. Imediatamente imaginei que o lugar teria que ser ocupado pelo patrono da sala, José de Anchieta. E decidi pintar um quadro que significasse a homenagem física, uma vez que já havia estudado sua figura histórica, quando publiquei um ensaio em meu blog de poesia. Imaginei o Anchieta poeta, o Anchieta educador, o Anchieta desbravador, o Anchieta pacificador – todos estes mais humanos que o Anchieta taumaturgo, como grande parte da população brasileira o considera. Nas facetas descritas, admiro o Anchieta poeta, que desfiava as línguas aprendidas em imensos e sensíveis poemas. Talvez o primeiro poeta brasileiro, ou a desenvolver a arte da poesia sob o sol tropical de Pindorama.

José de Anchieta nasceu em San Cristobal de La Laguna, em Tenerife, uma das sete ilhas do arquipélago das Canárias, Espanha, em 19 de março de 1534, portanto há exatos 485 anos. José foi o nome escolhido por ter nascido no dia de São José, no calendário cristão.

Pertenceu a uma família nobre de 12 irmãos, um dos quais também seguiu o sacerdócio. Sua mãe era natural das Ilhas Canárias, filha de judeus cristãos-novos. Seu pai, um nobre basco. O avô materno, Sebastião de Llarena, era um judeu convertido do Reino de Castela. Mas José de Anchieta abandonou suas origens ao escolher uma vida missionária.

Em 1551 foi estudar em Coimbra, Portugal, local onde teve o primeiro contato com a Companhia de Jesus, por meio de Francisco Xavier, um dos fundadores da ordem. Já aos 17 anos definiu sua vida religiosa. Na Companhia fundada recentemente por Inácio de Loyola, com quem Anchieta tinha laços de parentesco, fez um noviciado exigente, e mesmo com a saúde frágil adotou seus votos de castidade, pobreza e obediência.

Em 1553, com apenas 19 anos, foi enviado para o Brasil com missão evangelizadora. Mas deveria continuar seus estudos, pois ainda não era sacerdote. Estudava Filosofia, Teologia, em meio a seu trabalho catequista, dando aulas e conhecendo melhor o povo indígena. Para melhor evangelizar, respeitava a cultura dos índios e procurou aprender a língua Tupi-Guarani. E foi além: estruturou gramaticalmente o idioma dos índios, ao escrever um vocabulário, uma gramática e diversos opúsculos para os evangelizadores. Conhecia muito bem o Latim, o Espanhol e o Português, o que lhe facilitou a abertura ao trabalho literário. Hoje é considerado o iniciador da poesia e da dramaturgia brasileiras, deixando cantos piedosos, poemas e autos e diálogos ao estilo de Gil Vicente, espalhados entre os primeiros colégios brasileiros fundados pelos Jesuítas, a partir de São Paulo.

Suas cartas, enviadas a Portugal, inclusive algumas endereçadas a Inácio de Loyola, se tornaram fonte preciosa para o registro da história brasileira daquela época, além de contribuições para o estudo da fauna, da flora e da ictiologia local e da coleta que fez sobre aspectos etnológicos e folclóricos.

Mas nem tudo era paz nas relações com os habitantes da nova terra. Mais ao interior viviam os Tamoios, povo bravio, que trariam dificuldades aos trabalhos de aproximação. Nesse sentido, foi fundamental a sua tarefa como intérprete de Manoel da Nóbrega, seu chefe provincial, que procurava salvar da destruição as primeiras colônias do litoral paulista.

Nessa ocasião, permaneceu vários meses preso, como refém dos indígenas, para facilitar o trabalho de Nóbrega. Foi nessa situação que teria escrito o seu poema A compaixão e o pranto da Virgem na morte do Filho, primeiro em Latim (De compassione et planctu virginis in morte filii), em plena praia, utilizando um bastão. Não se pode duvidar que ele possa ter utilizado a grande lousa de areia para ensinar os indígenas, escrevendo algo aqui e ali, ou mesmo para ensaiar versos.  Mas seria um ofício grandioso escrever 4172 versos – esta a medida de seu poema – na areia e guardá-los na memória para, mais tarde, transcrevê-los no papel e traduzi-lo ao Português. Milagre de um futuro santo?

Em 1566 foi enviado à Capitania da Bahia com o encargo de informar ao governador Mem de Sá sobre o andamento da guerra contra os franceses, possibilitando o envio de reforços portugueses ao Rio de Janeiro. Somente nesta época foi ordenado sacerdote, aos 32 anos de idade.

Sua admiração pelo Governador-geral, fundador do Rio de Janeiro, era grande e a ele dedicou outro enorme poema, considerado pelos exegetas como obra comparável aos poemas de Homero, por ele denominado De Gestis Mendi de Saa, ou Os feitos de Mem de Sá.

Após a expulsão dos franceses da Guanabara, Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam motivado Mem de Sá a prender, em 1559, um refugiado calvinista, o alfaiate Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”. Em 1567, Jacques Le Balleur foi preso e conduzido ao Rio de Janeiro para ser executado. Porém o carrasco teria se recusado a executá-lo ou teve dificuldades para fazê-lo prontamente. Diante do fato e talvez até movido por piedade, Anchieta o teria estrangulado com suas próprias mãos. Essa história foi bastante discutida durante o processo de canonização de Anchieta. O episódio é contestado como apócrifo pelo maior biógrafo de Anchieta, o padre jesuíta Hélio Viotti, com base em documentos que, segundo o autor, contradizem a versão. Investigações históricas, baseadas em documentos da época (correspondência de Anchieta e manuscritos de Goa) corroboram essa versão absolvedora de Anchieta, quando revelam que Balleur não morreu no Brasil. Teria sido conduzido a Salvador, na capitania da Bahia, e dali mandado a Portugal, onde teve o seu primeiro processo concluído em 1569. Em um segundo processo, no Estado Português da Índia, foi finalmente condenado pelo tribunal da Inquisição de Goa, em 1572.

Anchieta dirigiu o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro por três anos, de 1570 a 1573. Em 1569, fundou a povoação de Reritiba (ou Iriritiba), atual Anchieta, no Espírito Santo. Outra ação memorável da vida de Anchieta é a fundação da cidade de São Paulo pelo grupo de jesuítas que ele comandava, ao lado de Manoel da Nóbrega, a 25 de janeiro de 1554. Com o objetivo de catequizar os índios que viviam na região, os jesuítas ergueram um barracão de taipa de pilão, em uma colina alta e plana, localizada entre os rios Tietê, Anhangabaú e Tamanduateí, com a anuência do cacique Tibiriçá, que comandava uma aldeia de guaianases nas proximidades.

Em 1577 José de Anchieta foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, função que exerceu por dez anos, até sua substituição, a pedido, em 1587. Retirou-se para Reritiba, mas teve ainda de dirigir o Colégio dos Jesuítas em Vitória, no Espírito Santo. Um equívoco histórico levou Anchieta a ser considerado o primeiro professor brasileiro. Mas esse mérito pertence a um colega seu, chegado ao Brasil antes dele, em 1549, com Tomé de Souza, que desembarcou na Bahia com a primeira missão jesuítica. Era Vicente Rijo, português, nascido no ano de 1528, em Sacavém, nas proximidades do rio Tejo, e falecido no Brasil, em 1600. Vicente rijo é historicamente considerado como o primeiro mestre-escola do Brasil, fundador de uma pequena escola na Bahia, por volta de 1549. Conviveu com Anchieta por algum tempo, quando se trasladou para a região hoje ocupada pelo Rio de Janeiro e o Espírito Santo.

Em 1595, José de Anchieta obteve dispensa das funções de Provincial e conseguiu retirar-se definitivamente para Reritiba, onde faleceu, em 1597. Seu corpo foi sepultado em Vitória. Beatificado em 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 2014 pelo papa Francisco, é conhecido, no mundo católico, como o Apóstolo do Brasil.

Volto à reflexão inicial: Anchieta não foi o primeiro poeta brasileiro, mas o certamente o autor do primeiro poema aqui composto. Outros poetas ter-lhe-ão sucedido. A história registra, em primeiro lugar, somente o nome de Gregório de Matos Guerra, nascido em Salvador – BA, em 1636 e falecido no Recife – PE, em 1695.

A Presidente do do Conselho Estadual de Educação, Conselheira Maria das Graças Figueiredo Saad, e o ex-Presidente Oscar Alves, descerram quadro de Anchieta, com o autor, Cleto de Assis

E finalizo com uma pergunta decorrente: qual foi o primeiro livro escrito no Brasil? Muitos preferem entregar o mérito ao primeiro libro publicado no Brasil, que foi “Marília de Dirceu” escrito em Portugal, pelo poeta Tomás Antônio Gonzaga, luso-brasileiro nascido na cidade do Porto, em Portugal. Mas os versos de Gonzaga somente chegaram ao prelo em 1792, em Lisboa, quando o poeta já cumpria o exílio em Moçambique, por sua participação da Inconfidência Mineira. no Brasil. A bem da verdade, o primeiro livro escrito no Brasil, embora publicado na Europa, foi a gramática de José de Anchieta – “Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil” –  que, junto com uma versão da figura de Anchieta, entrego à Presidente Maria das Graças Figueiredo Saad. Não esperem ver um retrato clássico ou quase fotográfico do jesuíta luso-brasileiro, homenageado com seu nome nesta sala do Conselho Estadual de Educação do Paraná. Não existem registros iconográficos de sua pessoa física, apenas a imaginação de alguns pintores, que lhe deram a imagem de uma pessoa combalida, de cabelos grisalhos e já com a doença que o distanciou das praias brasileiras a tomar conta do corpo e do espírito. Pensei em Anchieta como o primeiro grande comunicador do solo brasileiro, mais importante até do que Pero Vaz e Caminha, escrivão do primeiro relatório sobre as terras de Santa Cruz. Pensei em Anchieta como educador, razão porque recebeu a homenagem do Conselho Estadual de Educação do Paraná. Pensei em Anchieta em sua visão humanizante dos índios brasileiros, em uma época em que se discutia se os indígenas tinham alma. Fui ao encontro de uma alegoria, baseado em um retrato pintado por Oscar Pereira da Silva, em 1920, e que pertence ao acervo do Museu Paulista da USP. Pensei em um Anchieta que cumpria o sonho registrado no último verso do poema dedicado a Maria, aqueles lendariamente escritos nas areias de Iperoig:

Vivere dulce dies, hic mihi dulce mori! Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo.

Os encontos de João Defreitas

O tempo da memória

Conheço João Correia de Freitas há muitos anos. Convivemos em Brasília, quando assessoramos o então Ministro da Educação, Ney Braga. Tínhamos filhos ainda pequenos, quase coetâneos, que reforçaram o elo de amizade entre as duas famílias. Depois do exílio planaltino, nos reencontramos em Curitiba. Como diretor pedagógico da Facinter, núcleo inicial do atual grupo Uninter, ele convidou-me para auxiliar na implantação da metodologia de Educação a Distância em sua faculdade, ao lado do fundador Wilson Picler. Ali consolidamos nossa amizade, que perdurou mesmo após meu desligamento da instituição.

Parnanguara nascido e juramentado, Defreitas sempre revelou, em nossas conversas, os momentos de sua vida no litoral paranaense e, mais tarde, nas suas andanças pela Europa, onde viria conhecer a açoriana Alda Aguiar dos Santos Pereira. Por ela apaixonou-se e tiveram uma primeira filha portuguesa, antes de se mudarem definitivamente para o Brasil.

João Correia Defreitas

Com o advento da Internet e das redes sociais, Defreitas, já afastado das lides educacionais, passou a compartilhar suas memórias com amigos reais e virtuais, em croniquetas bem humoradas que sempre mereceram elogios de seus leitores. Historinha vem, historinha vai e a saudade manifesta o desejo de converter-se em texto gravado em letras de forma. O projeto foi entregue às mãos de uma editoria quase familiar. Sua filha, a arquiteta Mônica Defreitas Smythe, responsabilizou-se pela elevação poética dos textos, adornando-os com belas aquarelas. O genro, Nelson Smythe Jr. fez o projeto gráfico, também inspirado nas harmonias das palavras editadas. E não faltou a organização da amiga e antiga colega Profa. Vilma Aguiar, que também prefaciou a obra. A última pincelada foi da Editora Intersaberes, da Uninter, que cumpriu primorosamente o trabalho de editoração.

Como se trata de recordações, o livro tomou, simbolicamente, o formato de álbum de fotografias, daqueles em que as mamães colavam a vida de suas famílias, desde os próprios casamentos, passando pelo nascimento dos filhos, aniversários, férias, casamento dos descendentes. Antes, é claro, da fotografia digital, que encerrou a vida dos retratos revelados em laboratório especializado.A profusão das fotos feitas a cada instante pelos telefones celulares já não alimenta os relicários imagéticos familiares:  são guardados nos arquivos eletrônicos ou nas nuvens celestiais da informática.

Nas primeiras páginas, o altar carinhoso erigido na homenagem a Alda , a companheira que ajudou a fazer de João o mais lusitano dos parnanguaras. É bem possível que, em sua alma, o escritor tenha juntado as paisagens daqui e da península ibérica, modelando-as na memória com imagens comuns, que, sem serem rigorosamente bucólicas, guardam a simplicidade dos costumes, a tranquilidade da vida em contato com as pessoas simples e seus hábitos peculiares.

Li O tempo da memória em uma só assentada. Ou melhor, assentado em uma cadeira envolta no burburinho do público que compareceu ao lançamento. Um verdadeiro refrigério espiritual naquela manhã calorenta de sábado. Saí dali com maior admiração por meu amigo dileto. O único reparo – que tratei de comunicar ao autor – é a inexistência de um glossário, tanta a riqueza dos vocábulos regionais que ele apreendeu em suas andanças pela terrinha. Mas isso serviu de tempero extra para as narrativas minimalistas. E também me fez lembrar de José Paulo Paes (poeta a quem dedicarei, em breve, um lugar no Banco da Poesia), em seu poema Lisboa: Aventuras.



tomei um expresso
                                                           cheguei de foguete
subi num bonde
                                                           desci de um elétrico
pedi cafezinho
                                                           serviram-me uma bica
quis comprar meias
                                                           só vendiam peúgas
fui dar à descarga
                                                           disparei um autoclisma
gritei “ó cara!”
                                                           responderam-me “ó pá!”
                                                           positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá


                                        ******

Sem pretender roubar dos próximos leitores do Prof. Defreitas as surpresas e os sabores de seus textos, não posso deixar de transcrever, à guisa de amostra grátis, as palavras dedicadas à sua Avó:

“A única lembrança que tenho de minha avó é essa historinha que ela contava: ‘Da morte ninguém escapa, nem o rei nem o papa. Mas hei de escapar eu: compro uma panela, que me custa um vintém. Meto-me dentro dela e tapo-me muito bem… Então, a morte passa e diz: Huum… quem está aí? Eu digo: aqui. Aqui não tem ninguém!!!’ Enfim, nunca a entendi muito bem, mas nunca esqueço da avó e dessa história. Foi a herança que ela me deixou.”

FotoLivro.png

Finalmente, também a serviço dos próximos leitores, devo dizer-lhes que não esperem contos ou crônicas de aprofundada reflexão. João Defreitas nos regala belos e poéticos momentos de sua memória. Encontros com a vida. Encantos. Encontos. Cleto de Assis/dez.2018

                                                          


Não perca!

Compareça ao lançamento

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No dia 25, quarta-feira, 19h30, nas Livrarias Curitiba
Av. 7 de Setembro (Shopping Estação)
Manoel de Andrade lança seu novo livro
As palavras no espelho

***

Socorro!

Help!

“Help me if you can, I’m feeling down

And I do appreciate you being round

Help me, get my feet back on the ground

Won’t you please, please help me?”

 

Paul McCartney / John Lennon

Se quiser me ajudar…

…sussurre palavras suaves e doces em meus ouvidos.

Derrame sons de roçar de mãos na relva úmida de seu corpo.

Faça-me esquecer que vivemos no país da simulação

onde a mentira vira imediata verdade.

Se quiser me ajudar…

… brinque comigo com bolinhas de búrico.

Mas tem que ser búrico. Nada de búlica,

gude, fubeca, borroca, berlinde ou ximbra:

essas todas estrangeiras para minha infância.

Se quiser me ajudar…

… empine sua pandorga até as nuvens

e leve-me nela pendurado

para que eu conheça de perto

os rebanhos em constante dispersão.

PandorgaBR
Ilustração: C. de A.

Se quiser me ajudar…

… conte-me onde foi parar a minha coleção de pedras

que eu juntei com tanto carinho em uma mochila de lona,

e um dia foi-se de meus cuidados

levada pelos cuidados de alguém mais esperto.

Se quiser me ajudar…

… diga-me para onde seguiram meus amigos

cujos sonhos eram iguais aos meus

mas que se perderam em curvas inesperadas

sem olhar para trás e sem acenos de adeus.

Se quiser me ajudar…

…explique-me o que é essa tal liberdade

pela qual os homens prendem e matam

e inventam paraísos e nirvanas e outras utopias

e queimam vilas inocentes e sonhos de crianças.

Se quiser me ajudar…

… prove-me que este menino grande e pobre

chamado Brasil tem futuro e que a palavra

esperança ainda encontra sentido no presente

vilipendiado por tantos mal-eleitos.

Cleto de Assis

Curitiba/17.07.2018

Manoel de Andrade novamente nas livrarias

As palavras no espelho

“Así es la verdad – respondió don Quijote -, y si no me quejo del dolor, es porque no es dado a los caballeros andantes quejarse de herida alguna, aunque se le salgan las tripas por ella.”
Don Quijote de la Mancha, por Miguel de Cervantes

Faltava ao cavaleiro andante que atende pelo nome de Manoel de Andrade, poeta cataranaense[*] de alto coturno, abrir seu baú e expor as suas relíquias ainda não publicadas, ou editadas esparsamente por ele e diversos observadores de sua obra. Aberta a arca literária, surgiram as palavras agora refletidas em um espelho mágico, que refletem não só reflexões sobre o mundo em transformação em que cresceu, sobreviveu e ainda vive, mas também entrevistas concedidas, comentários, referências de outros escritores. E alguns poemas novos, porque a poesia sempre está presente diante do espelho do autor:

         “E agora, eis-me diante da poesia,
         Assistindo desabar as velhas torres do encanto…
         Perplexo, que posso ainda?
         Sou apenas um olhar melancólico diante da esperança.”

           Esperança e desencanto, que se transformam, na sequência do poema, em espanto e indignação, a esperança a projetar-se, cada vez mais, aos longínquos horizontes utópicos.

Não se trata, é claro, de um livro de memórias, embora as remembranças auxiliem a entender melhor sua trajetória neste mundinho de deus, no qual o intrépido ginete caçou dragões e perseguiu utopias. Vencedor em todas as liças? Nem sempre, eis que os dragões às vezes se transformavam em legiões e as quimeras se esvaneciam com o passar do tempo e pela força das revoluções silenciosas. Comprovam as palavras no espelho a dicotomia imposta à sua alma honesta e generosa, na qual comungam o ardor da luta social e o fervor da fé no mundo transcendente. Sempre, evidentemente, em benefício da realização do ser humano.

No galhardete de sua lança guerreira, sempre presente a palavra Poesia, também trincheira corajosa, cuja força expressiva opunha-se, por vezes, aos mais fortes gladiadores de plantão. Detalhes dessa saga moderna em seu livro “Nos Rastros da Utopia”, lançado em 2014.

Manoel de Andrade, revisitado em seu novo livro “Palavras no Espelho”, coincide com o jovem de espírito libertário que viveu intensamente o ano de 1968 e agora aproveita o aniversário cinquentão do movimento mundial que construiu uma esquina significativa na história da sociedade contemporânea. Sua mais recente obra inicia com uma revisão daquele ano, marcado, de janeiro a dezembro, pela manifesta insatisfação da sociedade humana em praticamente todos os quadrantes do planeta. Mas atentemos para o artigo precedente, batizado como “Nota do Autor”, no qual M.A. faz uma apologia ao livro impresso e explica porque recorreu à mídia gutenberguiana para publicar essa coletânea de escritos jogados à face de um espelho rútilo. Sem desmerecer sua tese, ele confessa que também utiliza o mundo virtual de tantos amigos e admiradores de sua obra, o novo suporte de registro do conhecimento que veio para democratizar a informação, não mais apanágio das cabeças intelectualizadas ou das bibliotecas físicas. Para encanto de M.A., podemos dizer que o ambiente digital é a verdadeira socialização da palavra, que tem tanta ou mais proteção do que a mídia impressa. (Uso aqui a antítese para comemorar os tantos diálogos que já desenvolvi com o autor de “As palavras no espelho”, eu sempre em defesa nos novos meios de comunicação, hoje ainda conturbados por se situarem em um período de transição e de nítido mau uso de seus processos. Mas benditos os de nossa geração, formados no universo de Gutenberg e ampliados nos sonhos de Bill Gates e Steve Jobs.)

Sem leitura linear obrigatória, o livro é notavelmente prazeroso. Pode-se absorvê-lo sem as cadeias do enredo, sete capítulos a formar uma mesa de sabores e saberes palatáveis ao gosto dos amadores e dos glutões literários.

Palavras_banco

Lançamento marcado para o dia 25 de julho de 2018, às 19h30, Livrarias Curitiba (Av. 7 de Setembro, 2775 – Shopping Estação), em Curitiba

Mas não se pense em uma coleção de retalhos. Registrei, no início, que são relíquias acomodadas pelo tempo em um relicário precioso. Libertos do baú, revelam um patchwork artesanalmente bem formado, delicadamente forrado para o conforto da boa leitura.

Últimas palavras: sou grato a Manoel de Andrade pela inclusão de textos meus em seu novo livro e pelo convite, aceito com o maior prazer, para desenhar a capa.


 [*]Dizia o igualmente ilustre paranaense nascido em Blumenau (SC), Karlos Heinz Rischbieter, que os antepenúltimo e  penúltimo estados do sul brasileiro deveriam ser unidos em um único topônimo, como Cataraná ou Paranarina (união de Paraná e Santa Catarina), em razão de suas origens culturais, semelhanças do processo colonizatório e aproximações econômicas. Daí o gentílico cataranaense usado para identificar M.A., nascido em Rio Negrinho (SC), criado em Itajaí, também naquele estado, e transferido ainda jovem para Curitiba, onde encontrou seus destinos seguintes.

 

Insomnia

Vem, sono

Vem, sono

Vem, sono vertical e manso,
cerra meus olhos e lança-me às águas dos Oniros
para que eu flutue na inconsciência (quase) absoluta
apenas guiado por Hipnos,
sem perturbar-me pela ilusões de Fantasos ou de Fobetor.
Preciso apenas dormir, dormir simplesmente.
Esquecer-me dos aguilhões da dor
que servem somente para lembrar-me:
“Tu és vivo e em agonia purgarás”.
Retorna-me ao abissal útero de Gaia,
pulsante e acalentador,
onde se encontra o perdido limbus infantum,
no qual pecados ou culpas são inefáveis.
Vem, sono fugidio.
Ensina-me teu ofício apaziguador
e permita que Nix estenda sobre meu corpo
sua colcha diáfana e tépida
untada com essência de papoulas
para que eu possa, finalmente,
alcançar as águas sussurrantes do Lete,
imerso na tranquilidade  do olvido.

Curitiba, madrugada insone de 12 de dezembro de 2017.

O verdadeiro Cine Fenix

Ressurgido das cinzas

Existe, no Paraná, um Cine Teatro Fenix, mantido pela comunidade de Apucarana. Mas o que mereceria assim chamar-se é o Cine Teatro Universitário Ouro Verde, de Londrina, literalmente ressurgido das cinzas, após o incêndio que o atingiu, em fevereiro de 2012. Já totalmente restaurado e atualizado, com relação às suas especificações técnicas, ele retorna para continuar como coração dos eventos os eventos que levaram à sua aquisição, em 1878. A historinha está contada aqui no Banco da Poesia. Retorno com ela porque a memória do povo é curta e a própria UEL, hoje, não a conta inteiramente, quando apenas fala que o cinema foi adquirido pela Universidade em 1978. Não foi. Ney Braga, então Ministro da Educação e, em seguida, governador do Paraná, foi o responsável principal pela compra do cinema e sua doação à UEL, juntamente com Jayme Canet Jr., governador naquela época.

Tenho orgulho por ter participado dessa história, portador que fui da notícia a mim passada por Walmor Macarini, em 1978, sobre a possível venda do cinema pertencente à família Garcia Cid. Abortamos a negociação então em andamento com um banco e. graças à sensibilidade de Ney Braga, o cine Ouro Verde consolidou-se como uma grande centro cultural que hoje também orgulha os londrinenses.