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Um poeta andino mais alto que os Andes

Os 120 anos de Vallejo

No último dia 16 de março completaram-se os 120 anos de nascimento do poeta peruano César Abraham Vallejo Mendoza (Santiago de Chuco, 1892 – Paris, 1938). O escritor uruguaio Mario Benedetti o considerava o mais influente poeta das letras hispano-americanas do mundo moderno e o chileno Pablo Neruda dizia que Vallejo era melhor poeta do que ele próprio. De vida atribulada, pendente entre a religiosidade com que foi criado em uma família pobre e a rebeldia política que o conduzia a denunciar o sofrimento dos mais pobres, César Vallejo  viveu seus 46 anos com a alma amargurada, sentindo-se desamparado a ponto de dizer que havia nascido em um dia em que Deus estava enfermo. Mas os grandes poetas são grandes até mesmo na tristeza e na desesperança. Foi o que percebeu o nosso poeta Manoel de Andrade no livro que escreve sobre suas andanças pela América Latina, ao dedicar um sólido capítulo sobre o poeta peruano. Vamos publicá-lo em homenagem ao aniversariante – por seu nascimento de março e por sua morte em 15  abril próximo, quando somar-se-ão  46 anos desde sua partida. Dada a riqueza de detalhes que compõe a vida de Vallejo, o texto é extenso, mas vale a pena registrá-lo, em face do cuidadoso e sensível tratamento dado por Manoel de Andrade. (C. de A.)

CESAR VALLEJO: Um coração dividido (*)

Manoel de Andrade

Eu conhecia apenas alguns poemas esparsos de Cesar Vallejo quando encontrei, entre os livros de Francisco Macias, – meu anfitrião em Lima em fins de 69 – o poemário Trilce.

Publicada em 1922, sob a influência das vanguardas europeias e rompendo com a tradição poética peruana, a obra lembrava-me a renovação da linguagem e a liberdade na criação poética apresentadas pelo movimento modernista brasileiro de 22, que também rompera com os cânones parnasianos e românticos da poesia brasileira, influenciada pelos ismos europeus e sobretudo pelo Futurismo de Maninetti.

Como nunca aceitei o radical rompimento com os ideais estéticos do século XIX, proposto pela Semana da Arte Moderna de São Paulo – que foi um modernismo meramente paulista, marcado pela irreverência e o ufanismo, ideologicamente reacionário e com uma insensata aversão pelo lirismo –  não  me identifiquei com o discurso poético do segundo livro de Vallejo. Trilce surgiu numa época em que, na literatura hispânica, estava em moda a poesia “experimental” como uma reação em marcha contra o modernismo e foi  um desesperado manifesto de liberdade do poeta, expresso por sua íntima intuição, mas marcado então por uma liberdade literária ainda sem norte. “Quero ser livre  – declara, na época, em carta, a seu amigo Antenor Orrego  – ainda que a troco de todos os sacrifícios. Por ser livre, me sinto ocasionalmente rodeado de espantoso  ridículo  com o ar de um menino que leva a colher às narinas…1 O resultado desse íntimo desencontro é uma atitude poética audaciosa e original, mas expresso em versos sem lógica, frases  fragmentadas, espaços em branco, letras invertidas, neologismos, imagens herméticas, numa linguagem extraída do caos e do absurdo que maculam a  imagem da poesia.

Como a postura de vanguarda, em Trilce, pertencia a uma fase da linguagem poética que eu já havia superado, – sobretudo pelo engajamento político da minha poesia na década de 60, no Paraná – mas sabendo da consagração mundial da poesia de Vallejo e das providências que, naqueles anos, tomava a intelectualidade peruana, para consagrar a imagem do seu maior poeta – desprezado e autodesterrado para sempre da pátria, quarenta anos antes –, me isolei por uma semana, na Biblioteca Nacional do Peru, para ler a tão comentada primeira edição nacional de sua obra poética completa,  lançada no país, no ano anterior pelo editor Francisco Moncloa. (2)

Excetuando-se quatro poemas, toda a obra poética de Vallejo, escrita depois de Trilce, somente foi publicada depois de sua morte. Contudo, seu livro Poemas Humanos, última fase de sua produção poética, continuaria marcado pelo binômio metafísico do tempo e da morte, ante a ironia e a orfandade do homem diante do destino, mas agora enriquecido pelo comprometimento político, pelo seu despojamento social e solidário com o ser humano onde sua poesia conquista o merecido reconhecimento mundial e a cidadania da universalidade. Percebe-se claramente nessa obra o resgate poético do vazio com que ele próprio declarou ter escrito Trilce: “ O livro nasceu no maior vazio” – escreveu ao amigo Antenor Orrego, logo após seu lançamento –“Sou responsável por ele. Assumo toda a responsabilidade de sua estética”.3 Essa discreta “mea culpa” prematura de Vallejo será reassumida abertamente, alguns anos depois em Paris, quando ele renega Trilce depois que adere ao marxismo e ao ativismo ideológico.

1. Los heraldos negros

Mas além da grandeza e da qualidade social dos Poemas Humanos, tocou-me sobretudo, o lirismo de seu primeiro livro, Los Heraldos Negros, de 1918, obra com a qual inaugurou uma nova fase da poesia peruana. O primeiro poema, que dá o nome ao livro, aqui apresentado na excelente tradução de Felipe José Lindoso4, nos leva a profundas reflexões sobre o significado da vida, com seus golpes, poucos, mas cruéis, que nos são enviados como os arautos da morte:

Os arautos negros

Há golpes na vida, tão fortes… Não sei!
Golpes como o ódio de Deus; como se diante deles
A ressaca de todo o sofrido
Encharcasse a alma… Não sei!
São poucos;  mas são… Abrem valas escuras
 no rosto mais duro e no lombo mais forte.
Serão talvez os potros de bárbaros átilas;
ou os arautos negros que nos manda a morte.
São as quedas profundas dos Cristos da alma,
de alguma fé adorável que o Destino blasfema.
Esses golpes sangrentos são as crepitações
de algum pão que nos queima na  porta do forno.
E o homem… Pobre… pobre! Volta os olhos, como
quando por cima do ombro nos chama uma palmada;
volta os olhos loucos, e todo o vivido
se empoça, como charco de culpa, na mirada.
Há golpes na vida, tão fortes… Não sei!”5

Todo o simbolismo que permeia Los Heraldos Negros ultrapassa esse estilo, meramente literário, para identificar-se com a própria simbologia da vida no seu cotidiano como um todo e a uma particular expressão nostálgica das imagens antropomórficas da cultura andina.  Talvez, por isso mesmo e por sua origem e aparência de mestiço, sua poesia não foi aceita, na época, pela “aristocrática” intelectualidade limenha. Na atualidade, Vallejo é a glória da poesia peruana, mas Mariátegui colocou abertamente, já em 1928, o dedo nessa preconceituosa  ferida cultural ao afirmar que  “Essa arte assinala o nascimento de uma nova sensibilidade. É uma arte nova, uma arte rebelde, que quebra com a tradição cortesã de uma literatura de bufões e lacaios. Essa linguagem é a de um poeta e de um homem. O grande poeta de Los heraldos negros e de Trilce  –  esse grande poeta que passou ignorado e desconhecido pelas ruas de Lima tão propícias e subservientes aos louros dos jograis de feira  —  se apresenta, em sua arte, como um precursor do novo espírito, da nova consciência”. (6)

2. O indigenismo de Vallejo

Vallejo foi amigo do grande ensaísta peruano José Carlos Mariátegui, com quem conviveu e depois manteve o mais estreito contato do exterior publicando seus textos na Revista Amauta fundada em Lima no ano de 1926, por Mariátegui,  levantando com ele as bandeiras do indigenismo andino – empunhadas primeiramente pelo pensamento lúcido e acusador de Manuel Gonzáles Prada, “descobridor” do índio peruano,7 e, depois, respectivamente,  por Ciro Alegria, José Maria Arguedas e  Manuel Scorza   –  e referindo-se poeticamente ao incário em sua histórica grandeza, quando o perfil do Império do Sol se justapunha á silhueta litorânea e a paisagem andina do continente americano do sul da Colômbia até o norte do Chile. “Consiste o indigenismo de Cesar Vallejo em mostrar seus antepassados não como débeis criaturas, mas sim pelo contrário” —  é o que afirma o escritor colombiano Miguel Manrique, mostrando a clara disposição de Vallejo para o melhor indigenismo, não somente na poesia, mas também como prosador em sua novela Hacia el Reino de los Sciris: Ressaltando a pompa de uma civilização na plenitude de sua glória e não na apresentação melindrosa da arquisabida má história da conquista. O que  melhor,  para alguém que se considera membro ou natural de uma coletividade, que representá-la com o brilho que Cesar Vallejo faz com esta curta porém imensa novela. Muito melhor do que se o escritor se colocasse na chorosa  tarefa de encenar a captura de Atahualpa e as exigências para o seu resgate. Vallejo se converte assim em um Homero quíchua que tece com luminosidade o esplendor de sua civilização, do outro costado do seu ser. Os dois sangues nunca o abandonarão nem muito menos o trairão, um em benefício covarde do outro. Vallejo soube toda a vida ser índio e espanhol, desfraldando uma mestiçagem fidalga, fiel descendente do quixotesco e do quíchua”.8

E agora, é novamente Mariáteghi quem declara: “Vallejo é o poeta de uma estirpe, de uma raça. Em Vallejo se encontra, pela primeira vez em nossa literatura, sentimento indígena virginalmente expresso.9 Contudo é um pouco diferente a opinião contemporânea do poeta e ensaísta peruano Américo Ferrari — talvez o melhor conhecedor da poesia de Vallejo  –  quando se refere a’Os Heraldos Negros: “O tema indigenista e telúrico é, de todos os modos, n’Os Heraldos Negros, secundário: a vocação do verdadeiro Vallejo é ruminar obsessões mais que descrever paisagens ou cantar a raça.” E contudo é o mesmo Ferrari quem escreve anteriormente: (…)“E, não obstante, existe algo mais: sob o espartilho das novas formas palpita a emoção e a nostalgia, o apego à terra andina de um homem que já antes de sair do Peru, na cidade costeira de Trujillo primeiro, em Lima depois, se sentia desterrado: desterrado do lar, que se confunde com o lugar onde nasceu, que se confunde com a pátria. A pátria é o entorno andino, com seu povoador, o camponês índio e serrano. Mais tarde, em Paris, o índio, essencializado e agigantado pela distância e a nostalgia, será protótipo de humanidade: “Índio depois de homem e antes dele”; e a serra peruana, símbolo de pátria universal: “Serra do meu Peru, Peru do mundo/ e Peru ao pé do orbe; eu concordo!”10

O fato é que sua condição de mestiço está sempre presente na sua assumida postura quíchua e castelhana, índia e espanhola, marcada pelo seu amor ao Peru e à Espanha, pela sua vida quixotesca e sempre iluminada pela luz e o calor de Inti, o deus Sol dos seus antepassados. “Había en Vallejo esa ‘inocencia candorosa’ que ha visto bien Larrea, pero oculta tras una máscara algo dura: la de su ‘pathos’ indígena, difícil en el primer momento de traspasar, llegando al transfondo puro, más allá del mestizaje sufrido. ‘Mineraloide’, incaico, andino  – se ha dicho.”11

Há também, na fase inicial da poesia de Vallejo, uma contraditória religiosidade e uma imagem de Deus ora evocada com amargura e hostilidade (“golpes como o ódio de Deus”) ora com o sentimento de piedade pelos homens:12

Sinto Deus que caminha
tão em mim, com a tarde e com o mar.
Com ele vamos juntos. Anoitece
Como ele anoitecemos. Orfandade…
 
Mas eu sinto Deus. E até parece
que ele me dita nem sei que boa cor.
Como um hospitaleiro, e bom e triste;
languesce um doce desdém  de apaixonado:
deve doer-te muito o coração.
 
Oh, Deus meu, só agora a ti chego
hoje que amo tanto esta tarde; hoje
que na balança falsa de uns seios
olho e choro uma frágil Criação.
 
E tu, o que chorarás… tu, apaixonado
de tão enorme seio girador…
Eu te consagro Deus, porque amas tanto;
porque jamais sorris; porque sempre
deve doer-te muito o coração.13

3. A pobreza, a indiferença e os caminhos do mundo

Nascido em 1892 em Santiago de Chuco, numa região montanhosa a quinhentos quilômetros ao norte de Lima, décimo primeiro filho de uma família de origem indígena e espanhola, Cesar Abraham Vallejo Mendoza sempre se identificou com os pobres e desamparados do mundo porque essa foi a imagem que trouxe da infância e adolescência marcada por dificuldades familiares próximas da miséria.. Viveu sua juventude com a intelectualidade de Trujillo em cuja Universidade estudou e onde publicou seus primeiros poemas. Foi lá que  entrou em contato com a poesia de Juan Ramón Jimenez, Miguel de Unamuno, Rubén Darío, Walt Whitman, Julio Herrera y Reissig e Chocano.14

Chega a Lima em 1917 e no ano seguinte publica Los Heraldos Negros, onde transparece a influência e sua admiração por Darío, a afinidade com Herrera, onde usa e abusa do valor dos símbolos. Talvez tenha sido a indiferença com que os limenhos trataram  a poesia de seus dois primeiros livros e sua injusta prisão de quatro meses, em Trujillo, por sua suposta participação em um incidente público ao visitar sua terra natal em 1920,  que o levou em 1923, a deixar o Peru para sempre, indo viver em Paris onde passará fome, dormirá algumas noites ao relento e depois sobrevive da atividade gráfica, jornalística, de traduções e docência. É ali que conhece os grandes poetas e pintores da época como Vicente Huidobro, Pablo Neruda, Juan Gris, Pablo Picasso, Antonin Artaut, Jean Cocteau, Tristan Tzara e o poeta espanhol Juan Larrea, que seria seu grande amigo, futuro biógrafo e com quem funda, em 1926, a Revista Favorables Paris Poema.  Em 1928 viaja a Moscou, onde conhece Maiakovski. Retorna a Paris, onde abre a  primeira célula parisiense do Partido Socialista do Peru e no ano seguinte, em companhia de Georgette Marie Philippart Travers – com quem passa a viver – viaja novamente à Rússia, retornando pela Hungria, Áustria, Tchecoslováquia, Polônia, Alemanha e Itália.

Em 1930 chega à Espanha para o lançamento da segunda edição de Trilce, voltando em seguida a Paris de onde é expulso por propagar o comunismo. Em 1931 está novamente na Espanha onde testemunha a queda da monarquia e a ascensão republicana. Relaciona-se com o filósofo Miguel de Unamuno, com António Machado e com os poetas mais jovens, da chamada “geração de 27”, como Federico Garcia Lorca e Rafael Alberti, Jorge Guillen, Miguel Hernandez, Luis Cernuda, Dámaso Alonso ePedro Salinas, entre outros e quase todos vítima da Guerra Civil Espanhola. Neste mesmo ano publica suas crônicas e ensaios sobre a Rusia en 1931 e Reflexiones al pie del Kremlin, título cujo sucesso de vendas levou os editores espanhóis a publicar três edições em quatro meses. Ainda em 1931, atendendo a uma proposta editorial de uma novela proletária, escreve em três semanas e publica em Madri o livro El tungsteno, onde recorda seu tempo de adolescente e o contacto com trabalhadores da Empresa Minimo Society, no assentamento mineiro de Quiruvilca, perto de sua cidade natal. Denuncia as injustiças por que passam os mineiros, acusando os “gringos” e autoridades peruanas que defendem os interesses dos exploradores norte-americanos em detrimento dos abusos contra os mineiros e, sobretudo, pela exploração de uma coletividade indígena da etnia sora, submetida pelos atos mais cruéis e iníquos de arbitrariedade e cuja revolta é sufocada com o sangue dos caídos.

Em 1931 realiza sua última viagem a Moscou para participar do Congresso Internacional de Escritores Solidários com o Regime Soviético, de onde retorna a Madrid e encontra as portas editoriais fechadas a seus novos livros em razão do caráter marxista e revolucionário de suas obras. Recomeça a escrever poesia cujos versos serão publicados, postumamente, com o título de Poemas Humanos.

Em 1932 filia-se ao Partido Comunista Espanhol e regressa a Paris onde vive na clandestinidade, organizando, posteriormente, com Neruda, a coleta de fundos para a causa republicana na guerra civil espanhola. Em 1937 volta pela última vez à Espanha para participar do Congresso Internacional de Escritores Antifascistas, e talvez porque sua precária saúde o impedisse de empunhar um fuzil para defendê-la, escreve seu grande poema político: España, aparta de mí este cáliz, que deu título ao livro de quinze poemas, publicado postumamente, em 1939, como um verdadeiro testamento poético, por sua viúva, Georgette Vallejo.

4. Cesar Vallejo, um coração dividido.

Vallejo foi homem repartido. Filho da consanguinidade indígena e espanhola, sentiu seu coração dividir-se pelos caminhos da vida. Primeiro sentiu sua alma partir-se, dolorosamente, entre a imagem querida da mãe e a imperecível saudade que chegou com sua morte, em 1918.  Repartiu-se entre o idílio e a separação da mulher que amou, num romance tormentoso e frustrado de sua juventude como professor em Lima. Sentiu sempre o coração dividido entre a pátria e o mundo e culturalmente entre o Peru e a Espanha.  Vallejo viveu dividido entre Paris e a sua crônica nostalgia da paisagem andina. Pablo Neruda, seu grande amigo, afirma que: “Vallejo era sério e puro. Morreu em Paris. Morreu no ar sujo de Paris, do rio sujo de onde tiraram tantos mortos. Vallejo morreu de fome e asfixia. Se o tivéssemos trazido para o Peru, se o tivéssemos feito respirar ar e terra peruana, talvez estivesse vivo e cantando.15

O poeta  transitou balizado pelas  ironias da vida, pelos golpes do destino, entre o desespero e a esperança, que atormentaram sua alma sobretudo depois dos quarenta anos, onde sua poesia mantém sempre aquela obscuridade tatuada pela dor dos homens, pela perplexidade ante o grande mistério da vida e o significado da morte: “Haver nascido para viver de nossa morte”, e assim sempre dividido entre o imenso vazio do mundo e seu sonho de plenitude espiritual e de uma eterna felicidade. “E se alguém fica perplexo ante esse universo de trevas, de limites, é sobretudo o próprio poeta que o revela em seu poema; (Panteón)  daí o acento de angústia que raramente abandona Vallejo; daí essas yuntas, essas parelhas de significações em conflito que não são nunca abolidas nem superadas: o todo – o nada, a alma – o corpo, o alto – o baixo, o nunca – o sempre, o tempo – a eternidade, a vida – a morte, Deus – nada”.16

Vallejo viveu repartido entre sua íntima plenitude, filosófica e poética, e sua fidelidade ao marxismo. Conforme carta datada em 29 de Janeiro de 1932 ao poeta e amigo Juan Larrea, Vallejo confessa: “Comparto a minha vida entre a inquietação política e social e a minha inquietação introspectiva e pessoal minha para dentro. Ou seja, O poeta sentia-se, pois, dividido, sem conseguir unificar as duas partes de que se sentia feito: uma de inquietação política e social, que o marxismo satisfazia; outra introspectiva e pessoal minha para dentro para a qual nunca encontrou resposta que o satisfizesse, nem mesmo a religião que desde os primeiros tempos pulsava no seu íntimo, sem que por isso possa entender-se a adesão a uma igreja. Essa angústia persistirá até a sua morte, não sem um vislumbre de esperança que o levará a ditar a sua mulher, poucos dias antes de morrer, estas palavras: Qualquer que seja a causa que tenha de defender perante Deus, para além da morte, tenho um defensor:Deus.”17

Vallejo, cuja poesia foi desprezada por seus contemporâneos, é tido hoje como o maior poeta peruano de todos os tempos e talvez a figura mais proeminente da poesia hispano-americana depois de Pablo Neruda, o qual declarou que a poesia de Vallejo era maior que sua própria poesia.  Foi um homem marcado por transes pedregosos, por uma infância de misérias e penitências, e sua pobreza o obrigou a abandonar, em 1910, o curso de Letras na Universidade de Trujillo – somente concluído em 1915 –  para dar aulas particulares e depois trabalhar na administração de uma fazenda açucareira no vale de Chicama, onde presencia o drama cruel e cotidiano da exploração do trabalho indígena. Ciro Alegria – que depois se tornaria um dos grandes romancistas peruanos – conta que foi aluno de Vallejo no Colégio San Juan, de Trujillo, e que (…) “De todo seu ser fluía uma grande tristeza. Nunca  vi um homem que parecesse mais triste. Sua dor era como  uma secreta e ostensível condição, que terminou por contagiar-me.(…)  Ainda que à primeira vista pudesse parecer tranquilo, havia algo profundamente desgarrado naquele homem que eu não entendi mas senti com toda minha desperta e alerta sensibilidade de menino.(…) Foi assim como encontrei a  César Vallejo e como o vi, como se fosse pela primeira vez. As palavras que dele ouvi sobre a Terra são também  as que mais  gravei na memória. O tempo haveria de revelar-me novos aspectos de sua pessoa, os longos silêncios em que caía, sua atitude de tristeza infindável…(…)”18

5. “O poeta dos vencidos”

Eu nasci num dia em que Deus estava enfermo”, afirma ele, reiteradamente, em seu poema Espergegia. E apesar de tudo, do sentimento pessimista pela sua dor e por compreender a imensa dor humana, do desamparo que colheu da vida, nunca permitiu que suas dolorosas experiências alterassem seu espírito solidário com os pobres, os injustiçados do mundo e apagassem de sua alma a fé revolucionária e a esperança com que o marxismo prometia a construção de uma sociedade mais justa para todos os homens.

É, por isso mesmo, chamado o poeta dos pobres, da dor dos homens, o “poeta dos vencidos” na ótica histórica de Eduardo Galeano, e esse é o retrato que está por trás dos 76 poemas que integram os seus Poemas Humanos, escritos entre 1931 e 1937, e publicados, postumamente, em Paris, em 1939. “Aí o poeta exprimiu o sofrimento próprio e dos outros, o absurdo da existência, o sentimento de culpa que sentia pelos direitos em que se baseia a sociedade que fazia parte, e revolta perante a injustiça que era gritante ao seu redor, o horror da guerra vista como conflito global, sem rosto, e como tragédia dos seus humildes protagonistas anônimos, as contradições de um ser tenso entre pontos opostos que não param de enfrentar-se, a esperança num mundo de compreensão entre os homens, que ele sabia ser uma utopia”19

O seu sentimento poético de solidariedade e de piedade pelos desamparados e humildes, cujos primeiros passos são dados n’Os Heraldos Negros, – como neste fragmento do poema El pan nuestro:

Todos meus ossos são alheios;
quem sabe os tenha roubado!
Dei-os a mim mesmo o que talvez estivesse
designado para outro;
e penso que, se não tivesse nascido,
outro pobre tomaria este café!
Sou um mau ladrão… Para onde irei?

E nesta hora fria, em que a terra
recende a pó humano e é tão triste,
quisera eu bater em todas as portas
e suplicar a não sei quem, perdão,
e fazer-lhe pedacinhos de pão fresco
aqui,  no forno do meu coração…!
(20)

– caminham ao longo de toda sua vida de escritor e chegam ainda mais comoventes em tantos de seus últimos poemas, como a perplexidade ante a dor humana em Los Nueve Monstruos e nestes versos fraternos de Traspié entre dos estrellas, ambos do livro Poemas Humanos:

Amado seja aquele que tem percevejos,
o que anda sob a chuva com sapatos furados
o que vela o cadáver de um pão com dois fósforos,
o que prende um dedo  numa porta,
o que não tem aniversário,
o que perdeu sua sombra num incêndio,
o animal, o que parece um papagaio,
o que parece um homem, o pobre rico,
o puro miserável, o pobre pobre!
21

6. O pressentimento e a morte

Na poesia dos últimos tempos de Vallejo, apesar do engajamento político dos seus  versos, persistirão sempre a sua obsessão pelo metafísico, que já existia com a feição religiosa  n’Os Heraldos Negros e ressurgindo somente em Espanha, aparta de mi este cáliz,  e nos Poemas Humanos onde o social e o metafísico se abraçam solidariamente nas emoções e sentimentos dos homens diante  da pobreza, do abandono, da injustiça e da morte. O tema da morte é uma constante na poesia de Vallejo e, à medida que o poeta dela se avizinha, vai registrando com seus versos sua despedida do mundo, como no poema París, octubre 1936:

De tudo isto sou o único que parte.
vou-me deste banco vou-me , de meus calções,
de minha  grande situação, de minhas ações,
de meu número fendido parte a parte,
de tudo isto sou o único que parte.

Dos Campos Elíseos ao dar volta
à estranha viela da Lua,
meu féretro se vai, parte de meu berço,
e, rodeada de gente, sozinha, solta,
minha semelhança humana dá a volta
e despacha suas sombras uma a uma.

E afasto-me de tudo, porque o todo
fica para ser restringido:
meu sapato, sua botoeira,  seu lodo
e até a dobra do  cotovelo
de minha própria camisa abotoada.
2

Há também um claro pressentimento de sua morte no poema Pedra negra sobre uma pedra branca. Não morreu na quinta, como supôs, mas no dia seguinte, numa sexta-feira chuvosa. Era outono em Lima, mas primavera em Paris. Este é um dos seus poemas mais conhecidos e dos mais reproduzidos nas antologias e seu estranho título deriva de uma tradição dos habitantes de Santiago de Chuco, sua cidade natal: o de colocar uma pedra negra sobre uma pedra branca para assinalar os enterros. Eis um fragmento:

Morrerei em Paris com aguaceiro
num dia do qual já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris — de onde não saio —
talvez numa quinta, como hoje, de outono.(…)
23

No início de 1938 leciona Língua e Literatura em Paris, quando tem um forte esgotamento físico. Foi internado em 24 de março com sintomas indefinidos que o levaram a uma forte crise e à morte em 15 de abril daquele ano, numa sexta-feira chuvosa. O poeta e romancista francês, Louis Aragon, um dos iniciadores do surrealismo, fez o elogio fúnebre a Vallejo, cujos restos repousam no cemitério de Montparnasse com o epitáfio: “He nevado tanto, para que duermas”.

“Esta primavera da Europa está  crescendo sobre mais um, um inesquecível entre os mortos, nosso bem-admirado, nosso bem-querido César Vallejo. Por estes tempos de Paris, ele vivia com a janela aberta, e  sua pensativa cabeça de pedra peruana recolhia o rumor de França, do mundo, da Espanha… Velho combatente da esperança, velho querido. É possível? E que faremos neste mundo para sermos  dignos de tua silenciosa obra duradoura, do teu interno crescimento essencial? Já em teus últimos tempos, irmão, teu corpo, tua alma te pediam terra americana, mas a fogueira da Espanha te retinha na França, onde ninguém foi mais estrangeiro.Porque eras o espectro americano  – indo-americano como vós outros preferis dizer  – , um espectro de nossa martirizada América, um espectro maduro na liberdade e na paixão. Tinhas algo de mina, de socavão lunar, algo terrenamente profundo.

“Rendeu tributo a suas muitas fomes” –  me escreve Juan Larrea. Muitas fomes, parece mentira…  As muitas fomes, as muitas solidões, as muitas léguas de viagem, pensando nos homens, na injustiça sobre a terra, na covardia de meia humanidade. O caso da Espanha já te ia roendo a alma. Essa alma roída por teu próprio espírito, tão despojada, tão ferida por tua própria necessidade ascética. O caso da Espanha foi a verruma diária para a tua imensa virtude. Eras grande, Vallejo. Eras interior e grande, como um grande palácio de pedra subterrânea, com muito silêncio mineral, com muita essência de tempo e de espécie. E ali no fundo, o fogo implacável do espírito, brasa e cinza…   Salve, grande poeta, salve irmão!”24

Pablo Neruda25

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Notas e textos em espanhol

(*) Este artigo integra o texto de um livro que o autor está escrevendo sobre os anos que passou na  América Latina , nas décadas de 60/70.

1. O texto original em espanhol pode ser encontrado em: FERRARI, Américo. César Vallejo entre la angústia y la esperanza. In: FERRARI, Américo (int.). Cesar Vallejo: Obra poética completa. Madrid: Alianza ,1983, p. 20.

2. O reconhecimento literário de toda obra poética de Vallejo chegou, editorialmente, trinta anos atrasado em seu próprio país. A primeira edição de Poemas Humanos (1923-1938) foi publicada  por Editions des Press Modernes, Paris, 1939, um ano depois de sua morte.  Já na América do Sul, foi a editora argentina Losada que tomou a dianteira na publicação de toda a sua poesia, editando, em  1949, as Poesías Completas (1918-1938). Em 1959, Los Heraldos Negros e Poemas Humanos foram publicados em Lima, em edições separadas, pela Editora Peru Nuevo. Contudo a publicação de  Cesar Vallejo, Obra poética completa, somente foi lançada no Peru em 1968, pelo editor Francisco Moncloa. Essa edição tornou-se clássica, servindo de base para muitas outras edições latino-americanas,  espanholas e portuguesas. Além do excelente prólogo de  Américo Ferrari, a obra, com 510 páginas, foi supervisionada por Georgette Vallejo, esposa do poeta, e sua originalidade está em apresentar  os fac-smiles dos poemas póstumos, quase todos datilografados e corrigidos pelo próprio Vallejo. Em 1970, a Casa das América editou em Havana Cesar Vallejo, obra poética completa, com prólogo do poeta cubano Roberto Fernández Retamar, reproduzindo o título e o texto da edição Moncloa.

3. FERRARI, Américo. Obra citada.

 4. MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Tradução Felipe José Lindoso. São Paulo: Clacso. 2008. p. 291/292.

5.  Hay golpes en la vida, tan fuertes… Yo no sé!/ Golpes como del odio de Dios; como si ante ellos,/ la resaca de todo lo sufrido/ se empozara en el alma… Yo no sé./ Son pocos; pero son… Abren zanjas oscuras/ en el rostro más fiero y en el lomo más fuerte./ Serán talvez los potros de bárbaros atilas;/ o los heraldos negros que nos manda la Muerte./ Son las caídas hondas de los Cristos del alma,/ de alguna fe adorable que el Destino blasfema./ Esos golpes sangrientos son las crepitaciones/ de algún pan que en la puerta del horno se nos quema./ Y el hombre… Pobre… pobre! Vuelve los ojos, como/ cuando por sobre el hombro nos llama una palmada;/ vuelve los ojos locos, y todo lo vivido/ se empoza, como un charco de culpa, en la mirada./ Hay golpes em la vida, tan fuertes… Yo no sé! (N.A.)

 6.  MARIÁTEGUI, José Carlos. Obra citada, p. 299.

7. A importância do indigenismo, no Peru, surge somente com as obras de Gonzalo Prada, estabelecendo, entre 1900 e 1930, o início da grande  polémica entre hispanismo e indigenismo que dominariam todo o pensamento social do Peru durante o século XX e marcam os conflitos culturais até os dias de hoje no país, cujas negociações têm buscado, sem sucesso, a igualdade cultural sem desconsiderar as diferenças.

8. MANRIQUE, Miguel. El hombre vallejiano. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid. v. I. n. 456/457, junio/julio 1988, p.531.

 9. MARIÁTEGUI, José Carlos. Op. cit., p. 291.

 10. FERRARI, Américo. Op. cit., p. 12.

 11. TORRE, Guillermo de. Tres conceptos de la literatura Hispanoamericana. Buenos Aires, Losada, 1963, p., 164.

 12. MARIÁTEGUI, José Carlos. Op. cit., p.296.

 13. Siento a Dios que camina/ tan  en mí, con la tarde y con el mar./  Con  él nos vamos juntos. Anochece./ con él anochecemos. Orfandad…/ Pero yo siento a Dios. Y hasta parece/ que él me dicta no sé qué buen color./ Como un hospitalario, es bueno y triste;/ mustia un dulce desdén de enamorado:/ debe dolerle mucho el corazón./ Oh, Dios mío, recién a ti me llego,/ hoy que amo tanto en esta tarde; hoy/  que en la falsa balanza de unos  senos,/ miro y lloro una frágil Creación./ Y tú, cuál llorarás… tú, enamorado/ de tanto enorme seno girador…/  Yo te consagro Dios, porque amas tanto;/ porque jamás sonríes; porque siempre/  debe dolerte mucho el corazón. (N.A.)

 14. José Santos Chocano, destacado poeta modernista peruano nascido em 1875, em Lima, também conhecido pelo pseudônimo de O Cantor da América. Foi uma estranha figura literária.  Polêmico e aventureiro, foi secretário de Pancho Villa, escapou por pouco do fuzilamento na Guatemala, em 1920, e matou em Lima, num duelo o jovem escritor Edwim Elmore. Morreu em 1934 em Santiago, assassinado por  um demente que acreditava ter Chocano  o mapa de um tesouro.

 15. NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. São Paulo: Difel, 1979, p.285.

 16. FERRARI, Américo. Op. cit., p.39.

 17. VALLEJO, César. Antologia poética. Tradução, seleção, prólogo e notas de José Bento. Lisboa: Relógio D’Água, 1992, p.19/20.

 18. ALEGRÍA, Ciro. El César Vallejo que yo conocí. Cuadernos Hispanoamericanos. México, ano III, vol. XVIII, n. 6, nov/dez 1944.

 19. VALLEJO, César. Op. cit., p 18.

 20. Todos mis huesos son ajenos/ yo talvez los robé!/ Yo vine a darme lo que acaso estuvo/ asignado para otro;/ y pienso que, si no hubiera nacido,/ otro pobre tomara este café!/ Yo soy un mal ladrón… A dónde iré!/ Y en esta hora fría, en que la tierra/ trasciende a polvo humano y es tan triste,/ quisiera yo tocar todas las puertas,/ y suplicar a no sé quién, perdón,/ y hacerle pedacitos de pan fresco/ aquí, en el horno de mi corazón…! (Tradução e nota do autor)

 21. ¡Amado sea aquel que tiene chinches,/   el que lleva zapato roto bajo la lluvia,/el que vela el cadáver de un pan con dos cerillas,/el que se coge un dedo en una puerta,/ el que no tiene cumpleaños,/ el que perdió su sombra en un incendio,/el animal, el que parece un loro, el que parece un hombre, el pobre rico,/ el puro miserable, el pobre pobre!  (Tradução e nota do autor)

 22. De todo esto yo soy el único que parte./ De este banco me voy, de mis calzones, de mi gran situación, de mis acciones,/ de mi número hendido parte a parte,/ de todo esto yo soy el único que parte./De los Campos Elíseos al dar vuelta/ la extraña callejuela de la luna,/ mi defunción se va, parte de mi cuna,/ y, rodeada de gente, sola, suelta,/ mi semejanza humana dase vuelta/ y despacha sus sombras una a una./ Y me alejo de todo, porque todo/ se queda para hacer la coartada:/ mi zapato, su ojal, también su lodo/ y hasta el doblez del codo/ de mi propia camisa abotonada.(Tradução e nota do autor)

 23. Me moriré en París con aguacero,/ un día del cual tengo ya el recuerdo./ Me moriré en París —y no me corro— / tal vez un jueves, como es hoy, de otoño.(Tradução e nota  do autor)

 24. NERUDA, Pablo. Para nascer nasci. São Paulo: Difel, 1979, p.66.

 25.  Este texto foi escrito quando Cesar Vallejo morreu e posteriormente publicado, em Santiago do Chile, pela revista Aurora, em 1° de agosto de 1938.

Os dois Mários utópicos

Em linha reta, menos de mil quilômetros os separavam. Um em Montevidéu, outro em Porto Alegre. Em linhas poéticas, nenhuma separação, a não ser de idéias individualizadas. Ambos buscavam a palavra simples, mas de enorme carga emocional. Ambos Mário. Um Benedetti, o outro Quintana. Ambos poetas que já se foram. Ambos menestréis do amor e da paz que ficarão entre nós eternamente.

Este post é dedicado a Manoel de Andrade, em regozijo à sua pronta recuperação.

Utopía

Mário Benedetti

Cómo voy a creer / dijo el fulano
que el mundo se quedó sin utopías

cómo voy a creer / dijo el fulano
que el universo es una ruina
aunque lo sea
o que la muerte es el silencio
aunque lo sea

cómo voy a creer
que el horizonte es la frontera
que el mar es nadie
que la noche es nada

cómo voy a creer / dijo el fulano
que tu cuerpo / mengana
no es algo más de lo que palpo
o que tu amor

ese remoto amor que me destinas
no es el desnudo de tus ojos
la parsimonia de tus manos

cómo voy a creer / mengana austral
que sos tan sólo lo que miro
acaricio o penetro
cómo voy a creer / dijo el fulano
que la utopía ya no existe
si vos  / mengana dulce
osada / eterna
si vos / sos mi utopía.

Utopia

Como vou crer / disse o fulano
que o mundo ficou sem utopias

como vou crer / disse o fulano
que o universo é uma ruína
ainda que o seja
ou que a morte é o silencio
ainda que o seja

como vou crer
que o horizonte é a fronteira
que o mar é ninguém
que a noite é nada

como vou crer / disse o fulano
que teu corpo / sicrana
não é algo mais do que apalpo
ou que teu amor

esse remoto amor que me destinas
não é o despir-se de teus olhos
a moderação de tuas mãos

como vou crer / sicrana austral
que és tão somente o que vejo
acaricio ou penetro
como vou crer / disse o fulano
que a utopia já não existe
se tu / sicrana doce
ousada/ eterna
se tu / és minha utopia

Versão: C. de A.

Ilustração: Cleto de Assis

Das Utopias

Mário Quintana

Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

de:  Espelho Mágico

Os poetas não morrem

Mario_Benedetti_1Os poetas perseguem o sonho e a eternidade, o maior dos sonhos. A música é arte universal, cósmica e a seus autores pertencem somente os traços de estilo. As artes visuais remetem às formas e cores da natureza, de quando em quando pinceladas de um momento fixado pelo artista. O escritor também descreve fatos e fados, distanciando-se do que ele mesmo é, a não ser também por lampejos estilísticos e latejos da alma.

Já o poeta fala por si mesmo. Quando lemos um poema de Homero, em sua grandiloqüência histórica, ou os versos de Pessoa, mais introvertidos, não vemos ali apenas palavras soltas, mas reflexos da alma dos autores, que foram ao fundo de suas consciências e inconsciências para recompor o belo das letras e dos sons das palavras. Se na Ilíada ou na Odisséia seguimos Homero a contar a história de seus heróis, é Homero que nos fala, presente, altissonante.

Morreu Mario Benedetti, dizem os jornais. Cessou a respiração física de um dos maiores poetas latino-americanos. Mas o respirar poético, o pulsar do coração anímico jamais cessará. Suas palavras ecoarão com maior intensidade, mesmo que suas mãos já não possam escrever versos novos. Seus 89 anos dedicados à literatura, à poesia e, sobretudo, à ânsia pela justiça social, bem justificam uma vida bem vivida e, agora, coroada com sua ascensão à galeria dos poetas universais.

Porque cantam os poetas

Talvez para eternizar-se, como refletimos acima. Mas Benedetti buscava por razões mais sólidas. Assim como o nosso Manoel de Andrade, ao inspirar-se no poeta uruguaio para fazer a mesma reflexão, em poema homônimo de  alguns anos atrás. Em homenagem ao poeta que se despediu da vida física, publicamos os dois poemas. Em seguida, um resumo biográfico de Mário Benedetti, que, a partir de hoje, está também em nossa Biblioteca Virtual:  https://cdeassis.wordpress.com/biblioteca-virtual-de-poesia/ (C. de A.)

Por qué cantamos

Si cada hora viene con su muerte
si el tiempo es una cueva de ladrones
los aires ya no son los buenos aires
la vida es nada más que un blanco móvil

Usted preguntará por qué cantamos

Si nuestros bravos quedan sin abrazo
la patria se nos muere de tristeza
y el corazón del hombre se hace añicos
antes aún que explote la vergüenza

Usted preguntará por qué cantamos

Si estamos lejos como un horizonte
si allá  quedaron árbores y cielo
Si cada noche es siempre alguna ausencia
y cada despertar un desencuentro

Usted preguntará por qué cantamos

Cantamos porque el río está sonando
y cuando suena el río / suena el río
cantamos porque el cruel no tiene nombre
y en cambio tiene nombre su destino

Cantamos por el niño y porque todo
y porque algún futuro y porque el pueblo
cantamos porque los sobrevivientes
y nuestros muertos quieren que cantemos

Cantamos porque el grito no es bastante
y no es bastante el llanto ni la bronca
cantamos porque creemos en la gente
y porque venceremos la derrota

Cantamos porque el sol nos reconoce
y porque el campo huele a primavera
y porque en este tallo en aquel fruto
cada pregunta tiene su respuesta

Cantamos porque llueve sobre el surco
y somos militantes de la vida
y porque no podemos ni queremos
dejar que la canción se haga ceniza.

(De Retratos y Canciones)
PorQueCantamos

Por que cantamos

(versão em Português – tradutor não localizado)

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

Você perguntará por que cantamos

Se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

Você perguntará por que cantamos

Se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

Você perguntará por que cantamos

Cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

Cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

Cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

Cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

Cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.

“Por que cantamos”

de Manoel Andrade

para Mario Benedetti(*)

manoel-de-andrade-foto-dele-img_7355Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os  caídos nesta guerra…
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e  temos que caminhar num chão minado…

“você perguntará  por que  cantamos”

Se a violência sitia os nossos atos
e a corrupção gargalha da justiça…
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche…

“você perguntará por que cantamos”

Se o medo  está  tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar…
Se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando…

“você perguntará  por que cantamos”

Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos.
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível.

Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana.
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável.

Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada.
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas.

Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino.

Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante.

Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença.
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.

Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.

Curitiba, maio de 2003
(*)  Escrevi  estes  versos motivado pelo belíssimo  poema  “Por qué cantamos”,  do poeta uruguaio Mario Benedetti. Num tempo em que todos caminhamos sobre o “fio da navalha”, me senti, como poeta,  implicitamente convocado a  também  testemunhar  por que cantamos. (Manoel de Andrade)

Súmula biográfica


don-mario-benedettiMario Benedetti nasceu em Paso de los Toros (Tacuarembó, Uruguay) no dia 14 de setembro de 1920. Educou-se no Colégio Alemão de Montevidéu e no Liceu Miranda, e trabalhou como vendedor, taquígrafo, contabilista, funcionário público e jornalista. Entre 1938 e 1941 residiu quase continuadamente em Buenos Aires e, em 1945, de regresso a Montevidéu, se integrou na redação do célebre semanário Marcha.  Ali se forma como jornalista, junto a Caros Quijano, e fez parte de sua equipe até 1974, com o encerramento da publicação. Naquele mesmo ano de1945, publica seu primeiro livro de poemas, La víspera indeleble, que não foi reeditado.

Depois do lançamento de sua primeira obra ensaística, Peripecia y novela, (1948) siguiu, em 1949, seu primeiro livro de contos, Esta mañana, e, um ano mais tarde, os poemas de Sólo mientras tanto. Em 1953, aparece Quién de nosotros, sua primeira novela, mas é o volume de contos Montevideanos (1959) – nos quais tomam forma as principais características da narrativa de Benedetti – o que supôs sua consagração como escritor. Com sua seguinte novela, La tregua (1960), Benedetti adquire projeção internacional: a obra teve mais de uma centena de edições, foi traduzida em dezenove idiomas e levada ao cinema, ao teatro, à rádio e à televisão.

Por razões políticas, teve que abandonar seu país em 1973, iniciando, assim, um longo exílio de doze anos, que o levou a residir na Argentina, no Peru, em Cuba e na Espanha, e que deu lugar também a esse processo por ele batizado como desexílio: uma experiência com marcas tão profundas tanto no vital como no literário.

Sua ampla produção literária abarca todos os gêneros, inclusive famosas letras de canções, e soma mais de setenta obras.  Entre elas se destacam suas recopilações poéticas Inventario e Inventario Dos, o ensaio El escritor latinoamericano y la revolución posible (1974), os contos de La muerte y otras sorpresas (1968), Con y sin nostalgia (1977) e Geografías (1984), as novelas Gracias por el fuego (1965) e Primavera con una esquina rota, que, em 1987, recebeu o Prêmio Chama de Ouro, da Anistia Internacional, assim como a extraordinária novela em verso El cumpleaños de Juan Ángel.

Seus livros mais recentes são Despistes y franquezas (1990), Las soledades de Babel (1991), La borra del café (1992), Perplejidades de fin de siglo (1993) e sua mais recente novela Andamios (1996). Sua obra poética completa foi recolhida en Inventario Uno (1950-1985) e Inventario Dos (1986-1991), e seus contos em Cuentos completos (1947-1994). Existe uma biografía de Benedetti escrita por Mario Paoletti, que se intitula Mario Benedetti, el aguafiestas.